Bruna Barros
4 min readMay 18, 2021

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Basta ser

Pensei em como o consumismo desenfreado muitas vezes molda minha noção de felicidade. É a famosa dicotomia entre o ter e ser. “Só vou ser feliz quando conseguir comprar minha casa própria” ou “quando tiver uma carreira estabelecida, autonomia financeira e um passaporte lotado, me sentirei realizada”. Nessa lógica, todo pertencimento do aqui e agora não passam de poeira ao vento, uma gota de orvalho na neblina. Como se a felicidade dependesse do sucesso em conseguir morder os próprios dentes. A vida como um imperativo do “querer” que leva à imensa frustração de “ser”.

Pelo padrão estar se elevando a cada instante, com as novas ferramentas sempre à nossa disposição, os novos produtos milagrosos da área de cosméticos, as promoções relâmpago de eletrodomésticos obsoletos, os celulares com cada vez mais atualizações, queremos tudo aquilo que ainda não temos. Pesquisas previam que o avanço tecnológico que temos hoje estava previsto para ocorrer daqui há 10 anos, ou seja, nunca vivemos tanto à frente do nosso tempo. A noção de progresso parece sinônimo de futuro e prosperidade. Em nome dela, corremos contra o tempo do agora em função do alto patamar de coisas que ainda nem ganharam forma ainda.

O filósofo Byung-Chul Han descreve a pessoa depressiva como sendo vítima e agressora de si mesma, nos parâmetros da sociedade de desempenho, uma crítica à modernidade. Desempenho pois, trata-se do paradigma da positividade, do poder e da produtividade. Podemos tudo e queremos poder tudo (yes, we can!). Somos incentivados a agir como máquinas de desempenho, que elevam todo processo de produção através de excessivo trabalho. Só que diferente de séculos atrás, esse imperativo é internalizado por nós mesmos. Eis que a famosa frase de coaches e meritocratas sintetiza a crítica de Han: “trabalhe enquanto eles dormem!”. A queda do depressivo, portanto, irrompe “no momento em que o sujeito do desempenho não pode mais poder.” Ele continua dizendo:

Ela [a depressão] é de princípio um cansaço de fazer e de poder. A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível. Não-mais-poder-poder leva a uma autoacusação destrutiva e a uma autoagressão. O sujeito de desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo. O depressivo é o inválido dessa guerra internalizada. A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade. Reflete aquela humanidade que está em guerra consigo mesma.”

Essa citação parece meu auto retrato, Han descreveu exatamente como me sinto em momentos de crise e alienação desses processos. A guerra que empreendo comigo mesma é também o reflexo de uma humanidade em guerra, que faz criações extraordinárias — como o caso da tecnologia— e depois vê a sua própria criação virar-se contra você, estilo drama Frankenstein. Não é o caso de robôs e máquinas, criados por humanos, substituírem os postos de trabalho de quem os criou?! Entender essa questão é também um carinho e sinal de respeito às minhas próprias turbulências. Até que ponto a depressão e todos os transtornos da mente não são, de fato, uma criação da modernidade?

Ao me ver sofrendo por ainda não ser muitas coisas esperadas que eu seja, expectativas internas e externas, percebi que na verdade eu estava sofrendo mais com a ausência do que com o cenário presente. Não estou sofrendo pela circunstância, mas por ainda não estar no lugar que me desprenda dela. Não estou desfrutando do caminho, que é o grande segredo do cultivo da felicidade, mas ignorando-o como se fosse um grande vazio angustiante entre o ponto de partida e chegada. O pacifista, filósofo, poeta e meu mestre, Dr. Daisaku Ikeda, ao explanar sobre esperança, questiona: “com que intensidade e paixão estamos desafiando o inverno? (…) Para celebrarmos a chegada da primavera, antes precisamos suportar o inverno.”. Se este é o momento do meu rigoroso inverno, o que devo fazer? Correr desesperadamente pelo frio, descalça e sem agasalhos para que a primavera chegue mais rápido? Não! Mas era o que eu estava fazendo, ao ignorar esse “desafiar com paixão e intensidade” o momento presente.

Em “A Espantosa Realidade das Coisas”, Alberto Caeiro proclama: “Basta existir para ser completo.”. Acho que é justamente repousando nas coisas do jeito que elas são, no momento presente em que o vento bagunça os cabelos, ou o canto dos passarinhos encontra os ouvidos é que basta apenas ser. Na falsa liberdade e desespero de comprar todas as coisas possíveis para um prateleira completa de felicidade, escolho repousar no momento presente.

Na perspectiva cósmica, num Universo absolutamente infinito, sob o olhar deu um vasto céu de estrelas, planetas e galáxias, a única certeza repousa no “ser” e não no “ter”. Somos os privilegiados que habitam o único planeta habitável. As coisas materiais não são nossas, apenas carregamos elas em malas, bolsas, cômodos. O que somos está em um universo interno muito mais complexo, mas que pode também ser o espaço de aceitação necessário para combater todo sentido de fracasso e frustração, que nada mais são que projetos idealizados pela sociedade de consumo para que busquemos preencher o vazio com mais vazio (e compras).

Ilustração autoral de Fernando Pessoa em sobreposição com trechos da poesia “A espantosa realidade das coisas”.

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Bruna Barros

a escrita como necessidade vital da minha existência.