Vermelho

Bruna Barros
5 min readMay 15, 2021

Pintei as unhas de vermelho numa quinta feira de céu nublado. No contraste entre o acinzentado do dia e o tom aberto desta cor primária, a ponta dos meus dedos pareciam um grande alerta. Na memória, refiz o filme de todas as vezes em que fui vermelho. Paixão, intensidade, fogo. Na boca, no brinco, na bolsa, no sapato. Por onde andava, havia vermelho em mim. Tempos atrás, onde as luzes de neon e ondas sonoras vibravam e espalhavam o som da mpb, forró, pop, rock, funk, por cada canto de aglomeração em que já exibi meu sorriso, minha dança, minha transa.

E também lembrei das tantas outras vezes em que fui vermelho sangue, guerra, conflito e ilusão. Como quando me senti cometendo os mesmos erros que a menina do conto ‘Os Sapatinhos Vermelhos’. E se você nunca ouviu, eu preciso te contar. Acomode-se.

Era uma vez uma menina tão pobre, tão pobre que não tinha nem sapatos para calçar. Então, resolveu recolher todos os trapos vermelhos que encontrava pela frente e fez um sapato de pano que a enchia de felicidade, por onde andava sentia alegria só por calça-lo. Era sua melhor companhia! Certo dia, uma senhora rica passou por ela numa carruagem e a chamou dizendo que iria cuidar da pobre menina como uma filha, oferecendo casa, roupas e comida. A menina, encantada pela proposta, aceitou e partiu na carruagem. Ao chegar na mansão dessa senhora, seus empregados imediatamente deram roupas novas à menina e se desfizeram do pouco que ela tinha, e é claro, dos sapatinhos vermelhos de pano também. A menina ficou muito triste ao saber que tinha perdido os sapatos que tanto a fizeram companhia, e quanto mais o tempo passava, mais saudade ela sentia, tremendo vazio que essa falta lhe causava. O tempo passou e a senhora rica resolveu crismar a menina na igreja (ritual sagrado católico). Muito religiosa que era, exigiu que a menina chegasse impecável para a cerimônia. Chamou costureiras para fazer um novo vestido e levou a menina ao sapateiro. Chegando lá, ela se encantou pelos lindos sapatos vermelhos, com um verniz brilhante, que estavam na vitrine. O sapateiro, conivente com o entusiasmo da menina, embrulhou os sapatos e a velha senhora, sem perceber, os levou. Quando a menina chegou à igreja, todos olharam para ela, impactados com aqueles sapatos tão chamativos. Quanto desrespeito para ocasião, pensaram os fiéis presentes. Quando chegou em casa, a senhora já tendo ouvido muitos comentários maldosos com a entrada triunfal dos sapatos vermelhos, impediu que ele fosse usado novamente. Entretanto, a menina estava fascinada demais e no domingo seguinte, adentrou a igreja com seus sapatos! Na entrada, um senhor presente disse a ela: "que lindos sapatos! Posso tirar o pó deles?” Orgulhosa, a menina permitiu e em seguida o senhor disse: “não se esqueça de ficar para o baile!” e cantou uma musiquinha. Quando avistaram a menina, a reprovação foi imediata. Mas ela não se importava, não via ninguém, apenas seus sapatos vermelhos. Na saída, o senhor disse a ela “que belas sapatilhas para dançar!” E então a menina saiu rodopiando pelo salão, dançando e fazendo piruetas. Todos corriam atrás dela e com muita dificuldade conseguiram alcançá-la e retiraram seus sapatos. Ao chegar em casa, mais uma vez, a velha senhora repreendeu a menina e colocou os sapatos no fundo do armário: “nunca mais volte a usar esses malditos sapatos”.

Poucos anos depois a velha senhora veio a falecer. Entediada com a vida que tinha, sem alegria e tendo de andar na ponta dos pés para não perturbar, a menina resolveu buscar os sapatinhos vermelhos escondidos no armário. Ao colocá-los, imediatamente a menina saiu andando, rodopiando e dançando, dançando e dançando, saindo da casa para floresta adentro. Os sapatinhos a guiavam para onde queriam. Sentiu uma imensa alegria! Até que não conseguia mais controlar aquele bailar e dançando foi percorrendo um longo caminho. Pediu ajuda em uma igreja, mas o sacristão disse que os sapatos eram amaldiçoados. Se aproximou de outras pessoas no caminho para pedir ajuda, mas todos tinham medo da maldição. Ninguém a ajudava a tirar aqueles malditos sapatos dos pés. Até que pediu ajuda a um líder de uma aldeia da floresta, e implorou que ele cortasse aqueles sapatos. Mas era inútil! Então a menina pediu que cortasse seus pés, pois ela não podia viver dançando. Com lágrimas nos olhos, o homem cerrou os pés da menina. Os sapatos, junto com os pés dela, continuaram a dançar, dançar e dançar sem parar. Ela, infelizmente, precisou aprender a viver sem seus pés e teve que trabalhar como empregada o resto da vida.

Finais brutais servem para tornar evidente uma realidade ignorada. Um grande alerta que poderia passar despercebido caso a menina conseguisse chegar ao fim da história com os pés intactos. Minhas unhas pintadas me alertaram ao ponto em que, os sapatos vermelhos de verniz que já calcei por muito tempo finalmente estão mundo afora dançando. E que o meu vermelho de hoje é do humilde sapato feito à mão, por mim. Ele me sacia, me preenche. Isso porque eu o chamo de poder inerente e criativo, que não pode ser raptado, ameaçado ou roubado, embora a chama tenha ficado por muito tempo branda, por descuido mesmo. Bem menos ingênua e encantada pelo brilho do efêmero, me recolho na felicidade do que é meu e do que de mim faz parte. Quantas de mim, de nós, já venderam sua intuição e seu relacionamento sólido consigo mesma para que, pelo amor de deus, alguém a amasse? Pela proposta indecente, pela carência, os relacionamentos tóxicos. O trabalho que suga tempo e energia, as amizades que nada agregam, o efêmero atraente para tapar buracos.

Há um ditado que diz: quando vamos ao mercado com muita fome, é de se esperar que voltemos para casa com muitas besteiras na sacola. Uma pessoa sedenta, faminta, do que quer que seja, está muito mais vulnerável a aceitar qualquer coisa que mate o está lhe matando. E dessa forma, as carapuças cercam o nosso terreno e com facilidade seguimos os rastros feitos para nos prender. Eu precisei recolher os ossos pelo chão do deserto, recriar a força desse vermelho acolhedor, como do primeiro sapato da menina feito a mão, sobrepujando tanta escassez. E quantas vezes for necessário realizar esse resgate, eu farei. Quero poder dançar, mas sem perder meus pés. Sapatos vermelhos de verniz são símbolo da vida domesticada e que se deteriora aos poucos. O outro, feito à mão, representa uma natureza inviolável inerente que precisa, a todo custo, ser preservada.

Desenho ilustrativo autoral feito com caneta nanquim, com citação “O vermelho é a cor da vida e do sacrifício” de Clarissa Pinkola Estés.

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Bruna Barros

a escrita como necessidade vital da minha existência.